UMA CLÍNICA DE INSPIRAÇÃO SARTRIANA – UMA PERSPECTIVA NA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL

O presente artigo objetiva ampliar o âmbito preciso em que se constituem a visão de homem nas considerações de Jean-Paul Sartre, Paulo Perdigão e Tereza Erthal para o universo da psicologia na abordagem da Fenomenologia Existencial, assim como, as possibilidades de uma clínica inspirada nesta perspectiva. É primordial considerar estas demarcações, rompendo incompreensões e, apropriando uma atitude cuidadosa e reflexível, sobretudo na busca por obter consequências para a ideia de uma prática atuante em Sartre. Com efeito, o artigo parte de uma perspectiva sartriana que só pode ser constituída através da exploração do método de investigação, sendo o relacionamento entre descoberta e legados que Sartre registrou na forma de uma psicologia fenomenológica original compreendendo o sujeito e os processos pelos quais ele se constitui para a base da ciência psicológica. A perspectiva sartriana enriquece a Psicologia, pois, ao ignorar o reducionismos, oferta uma concepção que não dicotomiza o fenômeno da objetificação-subjetificação, concebendo o sujeito na relação dialética entre a objetividade e a subjetividade. Sartre além de propor elementos para compreender o corpo, consciência e mundo como uma realidade humana e histórica, também clarifica como o sujeito, ao ser forjado na intersubjetividade, efetiva a sua história pessoal e coletiva.

SUJEITO, SUBJETIVIDADE E OBJETIVIDADE NO EXISTENCIALISMO DE SARTRE
Com o artigo, pretendo contribuir trazendo elementos para a compreensão do sujeito. Para tanto, nos fundamentamos no existencialismo de Jean-Paul Sartre (1905–1980), o qual o pensamento sartriano traz a compreensão que devemos, antes, esclarecer as duas regiões ontológicas, abordadas por ele em sua obra “O Ser e o Nada”: Ensaio de Ontologia Fenomenológica. Nesta obra, Sartre explana sua apreensão da realidade, dividindo-a em dois modos de ser: o ser-em-si e o ser-para-si. O ser em-si fala a respeito da objetividade, isto é, aos objetos visados pela consciência. É tudo que não é a consciência. Sartre consolidou o ser em-si em três características fundamentais: o ser é; o ser é o que é; e o ser é em si. Assim, é um ser que é visto consigo mesmo, que é opaco, maciço, acabado e indiferente a qualquer alteridade, um ser que “não se coloca jamais como outro a não ser si mesmo; não pode manter relação alguma com o outro (Sartre, 2011, p. 39).
O ser para-si, diz respeito à consciência ou à subjetividade que, numa perspectiva existencial sartriana, são a mesma coisa. Baseado-se nas contribuições de Husserl, Sartre (2011) enfatizou que a consciência é intencional e só pode ser concebida como relação a algo que ela não é. Na perspectiva de Sartre: “toda consciência, mostrou Husserl, é consciência de alguma coisa. Significa que não há consciência que não seja posicionamento de um objeto transcendente...” (p. 22). Assim, “se a consciência nasce tendo por objeto um ser que ela não é” (p. 34), tal como mostrou Sartre, ela, ao contrário dos seres em-si, não coincide consigo mesma e, portanto, está sempre em busca de um ser que possa constituí-la, para, efetivar a coincidência consigo mesma que ela almeja. Este ser que a consciência busca para completá-la é, segundo Sartre (2011), o ser em-si. Todavia, nesta busca, a consciência não visa a modificar-se em um simples em-si, haja vista que não o teria como consciência, mas objetiva transformar-se em um em-si-para-si: um ser consciente, mas com as características dos seres em-si.
Schneider (2002) afirma, Sartre foi contra as concepções racionalistas, subjetivistas e deterministas que dominavam a ciência psicológica e buscou confeccionar não apenas uma teoria, mas, também, uma metodologia direcionada para o homem concreto, em constante relação com a materialidade ao redor. Além de ter o homem como um ser concreto e relacional, o existencialismo sartriano o concebe, também, como um ser da história individual e coletiva. Sartre compreendia que “subjetividade e sujeito são aspectos distintos” (Schneider, 2002, p. 204). Assim, o estudo da constituição do sujeito deva agregar, também, a subjetividade, os quais não podem considerar que os termos são sinônimos e, muito menos, reduzir o sujeito somente à subjetiva. A subjetividade é tida como sinônimo de consciência e é considerada em relação a algo que ela não é, não podemos ter a subjetividade como uma entidade em si mesma ou como uma estrutura mental.
Para Sartre, “a subjetividade absoluta só pode se constituir frente a algo revelado, a imanência não pode se definir exceto na captação de algo transcendente” (p. 34). Sartre considera que a subjetividade é sempre uma subjetividade objetivada. Assim, seria insuficiente esclarecer a constituição do sujeito somente a partir da subjetividade, visto que ela é apenas uma dimensão do sujeito, assim como, a objetividade também o é. Numa perspectiva sartriana percebe-se que a subjetividade é sinônima de consciência e de para-si, enquanto o sujeito é uma síntese entre a subjetividade e a objetividade. A subjetividade absoluta ou de puro objeto, visto que cada ser humano, como sujeito, é composto por objetividade, mediada pela subjetividade. Neste contexto, um fator significativo a ser levado em consideração é o mundo.
O homem necessita tanto de corpo, quanto de consciência para estabelecer relações com o mundo, já que “o corpo é seu primeiro contato com o mundo e a consciência é sua condição, inevitável, de estabelecer relações” (Schneider, 2002, p. 180). Sartre (2011) postulou que “o para-si deve ser todo inteiro corpo e todo inteiro consciência ...” (p. 388). Isto quer dizer que o para-si é um ser psicofísico por ser integralmente corpo e consciência e que não há corpo sem consciência, nem, tampouco, consciência sem corpo. O para-si vem ao mundo dotado de corpo e consciência, isto é, com as condições para estabelecer relações, ainda assim, não há garantia de instauração de uma realidade humana, ou seja, somente o fato de ser corpo e consciência não corresponde a sua constituição como sujeito. Desta forma, na instauração da realidade humana, a construção de sua essência não está definida, mas necessita ser construída durante sua existência.
SER PARA LIBERDADE
Sartre afirma que o homem é o único ser no qual a existência precede a essência. Assim, se, no reino material, a essência precede a existência, isto é, se as coisas são, num primeiro momento, idealizadas por um artífice, para, somente depois, virem a existir, o homem é o ser que, primeiro, existe e, só posteriormente, durante sua existência, constrói a sua essência a partir das relações que estabelece com as coisas, com os outros homens no seu contexto relacional. Com esta máxima de que a existência precede a essência, descarta qualquer determinismo, bem como a concepção de uma natureza humana, afirmando a plena liberdade do homem: ele é somente aquilo que fizer de si mesmo, pois, “se toda a natureza é regida pelo determinismo, ao homem, e só a ele, cabe o reino da liberdade” (Perdigão, 1995, p. 86). É por este motivo que o filósofo afirmou que “o para- -si é o ser que se define pela ação” (Sartre, 2011, p. 535).
Sartre foi um dos filósofos que se debruçou sobre o tema da liberdade. Contudo, convém destacar a diferença entre a liberdade defendida pelo filósofo francês e a liberdade tal como é compreendida pelo senso comum. Para o senso comum, liberdade é não encontrar resistência ou oposição aos próprios projetos. Assim, para o senso comum, ser livre é conseguir obter o que se quer o que faz com que tal liberdade seja concebida como liberdade de obtenção. Sobre tal questão, Sartre (2011) apontava o senso comum, com efeito. O ser dito livre é aquele que pode realizar seus projetos. Mas, para que o ato possa comportar uma realização, é preciso que a simples projeção de um fim possível se distinga a priori da realização desde fim. Se bastasse conceber para realizar, estaria eu mergulhado em um mundo semelhante ao do sonho, no qual o possível não se distingue de forma alguma do real.
A liberdade sartriana apresenta-se concretamente, isto é, é definida na realidade objetiva. Nota-se, então, que o conceito sartriano de liberdade explana as resistências e as oposições que poderiam limitá-la e, portanto, a liberdade não é de obtenção, mas de eleição, tendo visto que se encontra fundamentada na autonomia de escolha. Assim, diferente da forma como é compreendida pelo senso comum, para Sartre, o êxito não importa em absoluto à liberdade. Para o existencialismo sartriano, o homem é livre, sendo ele quem se define a partir daquilo que fizer de si mesmo, ou seja, daquilo que projeta no futuro, por meio de suas ações, de seus atos e de suas escolhas. Portanto, suas escolhas não são efetivadas ao seu bem prazer, pois a máxima sartriana de que a existência precede a essência explana objeções no campo da moral e da ética, isto é, no que se refere à responsabilidade das ações do sujeito.
A responsabilidade não diz respeito somente aos aspectos individuais, conforme Sartre afirma: Atinge também a esfera social, pois o mesmo acreditava que, ao fazermos escolhas, desenhamos não apenas a nossa história individual, mas, também, a coletiva, no ato em que deixa­mos marcas na objetividade. Sartre enfatizava que, em todos os nossos atos, cria­mos o homem que queremos ser. Estamos criando, também, uma imagem do homem tal como julgamos que ele deva ser e, as­sim, “tudo se passa como se a humanidade inteira estivesse de olhos fixos em cada ho­mem e se regrasse por suas ações” (Sartre, 1987, p. 5).
PROJETO ORIGINAL
Sartre (2011) precisou romper com algu­mas concepções tradicionais, dentre elas, a concepção tradicional do tempo, para levantar a plena liberdade hu­mana e defender que a ação do homem não havia determinismos. Sendo de conhecimento expressivo da grande maioria dos pensadores que compreenderem o tempo com um fenômeno do mundo exterior, ou seja, como uma dimensão da objetividade, repleta de uma linearidade se­quencial embasada no princípio de causa e efeito, em que o passado escreve o pre­sente e ele, por sua vez, determina o futu­ro. Diferente a estes pensadores, Sartre (12011) compreendeu o tempo, não como uma dimensão do em-si, ou seja, da objetividade, mas como uma dimensão da realidade humana, isto é, do para-si, ou seja, da consciência.
Perdigão (1995) neste contexto apontou que não é a cons­ciência que existe no tempo, mas é o tempo que existe na consciência. O filósofo distancia-se da concepção linear de tempo e coloca que passado, presen­te e futuro não são instantes divididas por breves intervalos, mas estão conectadas, numa dinâmica temporal inseparável, em que cada um deles encontra seu sentido nos demais. Percebe-se, então, que o futuro é a dimensão temporal que se baseia na maior importância para a rea­lidade humana, na medida em que o ho­mem vive, constantemente, em relação dos possíveis futuros, isto é, está sempre além de si mesmo e do mundo, em caminho do porvir, a fim de localizar seu complemen­to, ou seja, o que lhe falta. Perdigão (1995) verbaliza:

(...) sendo aquilo que ainda não sou o futuro representa bem aquilo que me falta. Um ser cujo complemen­to se acha sempre mais além, o Para-si, totalização-em-curso, tem no futuro o seu Ser faltante, a sua totalidade. O futuro anuncia ao Para-si o preenchimento desta fal­ta, mostra-lhe a totalidade sempre inconclusa de seu Ser, indica-lhe aquilo que pode ser e ainda não é. O futuro surge como “aparição-à­-distância” de seu Ser inteiramente acabado. Encaro o futuro como se nele eu próprio me aguardasse só­lido e completo, absoluta totalidade (p. 75).


Sartre (1960/1987) denominou de projeto o movimento do sujeito em estar sempre além de si mesmo, lançado em di­reção ao futuro, a procura de uma totaliza­ção, de uma definição de si mesmo. O projeto é a “... superação subjetiva da objetividade em direção à obje­tividade, tenso entre as condições objetivas do meio e as estruturas objetivas do campo dos possíveis, representa em si mesmo a unidade em movimento da subjetividade e da objetividade” (p. 154). Pode-se conceber que o projeto faz a mediação entre duas objetividades: o pre­sente e o futura (Perdigão, 1995). Por meio do projeto, refuta uma situação dada em função ainda inexistente. Portanto, a práxis humana é concebida como negatividade e positi­vidade: Negatividade com relação às condi­ções já postas e positividade com relação ao ainda não existente, ao futuro. A essência humana construída não é imutável, pois, a qualquer momento, o ho­mem pode mudar o seu projeto, construir­-se e constituir-se de uma maneira diferente. Nas palavras de Sartre: “o homem carac­teriza-se antes de tudo pela superação de uma situação, pelo que ele chega a fazer daquilo que se fez dele, mesmo que ele não se reconheça jamais em sua objetivação” (Sartre, 1987, p. 151-152).
As reflexões de Sartre podem agregar para uma compreensão mais abrangente acerca do sofrimento psíquico, que pode ser concebido não apenas como sofrimen­to exclusivamente íntimo e individual. A perspectiva existencial sartriana tem a visão de homem como um ser histórico­-social, que se constitui a partir da relação dialética entre a objetividade e a subjetivi­dade no contexto social, o sofrimento, como fator da realidade humana, deve conter, também, a marca da intersubjetividade, da história e da sociedade. Portanto, o homem se lança ao mundo como total indeterminação e, so­mente a partir das relações do seu corpo e sua consciência com o mundo, se consti­tui como sujeito específico em movimento. Pode-se considerar que, ao nascer, o sujeito é incluso em um determinado contexto histórico, social, cultural, políti­co, econômico e familiar que não foi por ele escolhido, já que é fruto das objetivações deixadas pelas gerações passadas. A partir do ato em que inicia a se relacio­nar com a objetividade que o rodeia, ele efetiva o movimento de interiorização desta exterioridade, isto é, subjetiva tal objetivi­dade, tornando-se, assim, um sujeito espe­cífico, com sua própria singularidade. Todavia, não se deve cristalizar que o homem é um simples produto das condi­ções objetivas, pois, ao mesmo tempo em que concretiza o movimento de interiorização da exterioridade, o homem registra suas mar­cas na objetividade, construindo, assim, sua história pessoal e coletiva. Sendo assim, a reali­dade objetiva vivenciada pelo sujeito se torna subjetiva e, esta realidade subjetiva, por sua vez, se objetiva por meio de seus atos e escolhas, o que torna o homem um produto, mas também um produtor; constituído e constituinte. É uma perspectiva que não busca compreender o homem de maneira abstrata, mas em cons­tante relação com os outros e com a sua materialidade, ou seja, como liberdade, ca­paz de superação da realidade objetiva.
O MÉTODO: PSICANÁLISE EXISTENCIAL
Sartre adota, sem reservas, o método fenomenológico de Husserl, procurando aplicar as indicações que este prescrevia, desmistificando atitude natural e atitude fenomenológica, esmiuçando o gesto intelectual da epoché, assumindo a intuição de essências como objetivo a alcançar, após um procedimento rigoroso, de reflexão, explicitação e descrição. Podemos compreender que não é quanto ao seu método que encontramos alguma originalidade, pelo menos frente a Husserl, na psicologia fenomenológica de Sartre.
Primeiramente aponto um entendimento distinto a respeito da intencionalidade da consciência. Se para Husserl a intencionalidade é reconhecida como essencial à consciência, para Sartre, e por uma radicalização que manifesta, a intencionalidade mostra-se afinal como tudo o que a consciência pode ser, ou seja, seu único modo de ser. Em segundo lugar, um entendimento divergente sobre o papel e o lugar do Ego na relação com a consciência - para Sartre, ao contrário, de maneira nenhuma, pode considerar uma imanência do Ego à consciência. Em suma, se faz sentido verbalizar de uma psicologia fenomenológica especificamente sartriana.
É legitimo afirmar que Sartre foi um crítico de Freud, ainda que se disponha a se inspirar na psicanálise. Mas é fundamental averiguar mais especificamente a sua posição, enquanto representante da fenomenologia que, ao mesmo tempo se explana como proponente de uma psicanálise existencial. A apreciação crítica que, por regra, os fenomenólogos fazem da psicanálise clássica freudiana encaminha-se, sobretudo à sua pressuposição de uma base pulsional de carácter biológico. Sartre elenca uma contradição profunda na psicanálise, ao significar ao mesmo tempo um elo explicativo e compreensivo nos fenômenos que estuda (SARTRE, 2005). A fenomenologia, numa primeira abordagem, tende a reagir mal a uma apresentação que mistura tanto a dimensão fisiológica com a significativa, quanto às dimensões explicativa e compreensiva, esforçando-se por dar conta de uma incompatibilidade de princípio entre estas.
Em meio a reflexões como estas se torna claro que a base da psicanálise existencial não se mostra independente da psicologia fenomenológica, da mesma maneira em que fica entendido a crítica de Sartre a Freud através de Husserl. Pois, o método sartriano, reflexionado na esteira próxima de Husserl e em vista da constituição de uma ciência, não é propagado com a proposta de uma psicanálise existencial.
Uma das maneiras que podemos diferenciar a psicanálise existencial da psicologia fenomenológica sartriana está na menor presença de Husserl, compensada por uma maior presença de Heidegger em O Ser e o Nada, assim como na maior presença de Marx em Questões de Método.
A psicanálise existencial explana-se como um método refletido a partir de inúmeros diálogos, críticas, inspirações e contraposições com a teoria destes autores principais. Este trabalho de Sartre em construir um método que de fato possibilitasse a compreensão do homem como liberdade em situação, sem reduzi-lo a determinismos, é a sua maior contribuição às ciências humanas.
Sartre coloca em prática sua psicanálise existencial por meio do que se costuma reconhecer como “analisandos de papel”, célebres personalidades analisadas pelo método sartriano como Baudelaire, Mallarmé, Genet e Flaubert, de forma a contribuir com o desejo do autor de não permanecer fechado a uma filosofia contemplativa, mas desenvolver um método que possibilitasse uma prática. Deste modo, é em O Ser e o Nada, em meio às influências já citadas, que Sartre (2001) constrói seu método a fim de apontar fundamentos para algo que fosse além de uma simples descrição das estruturas do para-si, modo de ser da realidade humana. Ao longo do capítulo de Psicanálise Existencial de O Ser e o Nada, Sartre faz diversas referências a tal urgência metodológica, urgência esta que revela sua necessidade de pensar outro caminho, que ultrapassasse algumas lacunas deixados por Freud. Uma das principais divergências entre Sartre e Freud descreve-se ao fato de que a psicanálise empírica freudiana define o homem por seus desejos. Para Sartre (2001), o psicólogo que parte deste pressuposto “permanece vítima da ilusão substancialista” (p.682) entendendo o desejo como um “conteúdo” da consciência, existente no homem. Para a psicanálise existencial, essa questão foi ajustada pela fenomenologia, a qual emprega desde o início que se todo desejo é desejo de um desejado, posto que para Sartre todo e qualquer objeto desejado esta fora, é objeto transcendente para a consciência desejante.
A diferença mais radical entre os dois autores reside na incompatibilidade em relação ao ponto chave de toda edificação teórica da psicanálise freudiana, o inconsciente. Para Sartre, somos sempre consciência, mas nem sempre conhecimento, o que não significa, de modo algum, considerar que haja uma instância inconsciente. Essa discordância fundamental acontece como um desdobramento coerente e derivado de toda a ontologia estabelecida desde a introdução de O Ser e o Nada.
A psicanálise existencial pretende, então, compreender o projeto fundamental do homem, efetuando uma comparação entre suas escolhas de modo a destacar a conexão que as unifica, já que “em cada uma delas acha-se a pessoa em sua inteireza” (SARTRE, 2001, p. 690).
As contribuições de Sartre à psicologia, desde sua psicologia fenomenológica ao seu método de Psicanálise Existencial, o filósofo nos oferece novas bases de pensamento para o estudo do homem que possibilitam uma compreensão, ao mesmo tempo, de sua historicidade e de sua singularidade. Sartre tinha como objetivo de sua psicanálise o estudo de seus “analisandos de papel”, mas as implicações de sua psicologia e psicanálise para a clínica hoje é ainda uma tarefa que nos propomos a refletir.
PRINCÍPIOS PARA UMA PRÁTICA CLÍNICA SARTRIANA
Não possamos afirmar confortavelmente que Sartre tenha projetado os princípios para uma prática clínica embasada na sua filosofia e na sua psicologia. Se for legítimo fazer-se menção seja a uma filosofia sartriana seja a uma psicologia sartriana, ambas originais, não se justifica, porém, falar de uma clínica sartriana. Isto não impede bem entendido, que se reflita uma prática clínica inspirada em Sartre. Como é de conhecimento, em O Ser e o Nada, Sartre ia deixando o recado de que ainda faltava à psicanálise existencial ao seu Freud.
Quando Sartre afirmou a ausência da psicanálise existencial ao seu Freud, podemos crer estar admitindo, de uma forma clara a falta da psicanálise existencial a sua clínica. Apesar destas ressalvas, já na obra de 1943, Sartre deixa dito uma pretensão de que uma clínica viesse a constituir-se, sobretudo pela referência explícita que ele faz à relação clínica, chegando a enfatizar algumas nuances fundamentais de como poderia ser uma atitude de um psicanalista existencial em oposição a atitude de um psicanalista de base teórica freudiana.
Ocorre no espaço clínico o acontecimento de uma relação entre duas pessoas que se predispõem a uma situação clínica e a inspiração sartriana propiciará ao fenômeno da compreensão o papel fundamental, reivindicando com isso uma constante necessidade de se elaborar práticas daqueles que compreendem, como uma atitude fenomenológica. Uma clínica de inspiração sartriana se define por uma busca coletiva de se construir novos ângulos de visão sobre as diversas perspectivas já constituídas. Uma atitude fenomenológica implica em colocar o outro enquanto fenômeno que se mostra através dessas diferentes perspectivas. Assim, o objetivo da clínica é propor que este espaço seja aberto à aparição do ato de criação dos sentidos, ao contrário de uma busca por verdades independentes da relação que ali está em jogo. A possibilidade de criação dos sentidos, nesse caso, é uma possibilidade aberta pela relação intersubjetiva que se estabelece entre dois para-sis sob o modo de ser para-outrem. Ambos, analista e analisando utilizam nesse caso do olhar do outro como objetivação precisa para a compreensão do fenômeno por um “lado de fora”, e não simplesmente na “luz que ilumina sem relevos” da subjetividade (SARTRE, 2001). Desta forma, ambos possibilitam a explanação de uma construção de sentidos conjunta, através de uma relação de confiança que se constrói no ponto de vista de outrem, de um outro perfil, do mesmo fenômeno. Sendo assim, podemos consideramos que o objetivo do trabalho clínico é possibilitar que à pessoa possa vir a reconhecer-se. Como afirma Sartre, o olhar do outro permite o reconhecimento de minha condição existencial, já que através dele me é dado um “lado de fora”, isto é, um ângulo meu, que seria impossível de atingir sozinho. Para me reconhecer como tal, necessito deste outro que me olha. Desta forma, diz Paulo Perdigão (1995), “só estou capacitado a formular um juízo objetivo, saber-me de determinado modo [...] porque esse tipo de autoconhecimento passa pelo Outro” (p. 143). Tal afirmação de me reconhecer diante deste outro que me olha é intencionalmente expressa por Sartre na carta que Daniel escreve a Mathieu no romance Sursis:
Durante um instante, foste o mediador entre mim e mim mesmo, o mais precioso do mundo aos meus olhos, pois esse sólido e denso que eu era, que queria ser, tu o percebias tão simplesmente, tão vulgarmente, como eu te percebia. [...] Compreendi, então, que a gente só se podia alcançar através do juízo de outrem [...] Que angustia descobrir subitamente esses olhos como um ambiente universal do qual não posso fugir [...] Transformo para uso próprio, e com toda a tua indignação, a palavra imbecil e criminosa de vosso profeta, esse ‘penso, logo existo’ que tanto me fez sofrer – pois quanto mais eu pensava menos me parecia existir – e digo: vêem-me, logo existo (SARTRE, 2005b, p.398).


Quando se pensa na clínica com base em Sartre, devemos adentrar na criação de algo novo, que não foi desenvolvido pelo autor, e que nos lança no terreno vivencial da experiência, mas precisamente a partir do quadro de referências constituídos no seio da sua psicologia fenomenológica e da sua psicanálise existencial. Com a necessidade de criar possibilidades para a clínica a psicóloga Tereza Erthal em 1989 obteve a autorização de Arlete Erkaim-Sartre para desenvolver a Psicoterapia Vivencial. A Terapia Vivencial por um, lado prioriza a relação terapêutica, utilizando as atitudes rogerianas e, por outro, buscando levar ao cliente a uma investigação de si, de suas possibilidades, tendo como foco principal, a filosofia de Sartre, que enfatiza a busca do projeto original. O método proposto na Terapia Vivencial é o proposto por Sartre: progressivo- regressivo, que se compõe pela apreensão dos significados e sentidos da experiência do cliente e por uma volta à história do cliente, almejando compreender como esse se constituiu como ser no mundo. Assim como, Retomar o presente associando ao passado. É primordial ressaltar que em nenhum momento o retornar ao passado do cliente é um buscar por causas determinísticas e, sim, uma leitura ampla da maneira dinâmica da construção de seu modo de ser, no qual, estão implicados, fatores socioculturais, biológicos, e suas escolhas. Esse método apresentado não se estabelece de uma maneira cristalizada na psicoterapia, mas de maneira flexível a cada relação terapêutica, que é única, em um processo de ir e vir da historicidade do cliente para o presente. A abordagem Vivencial reconhece que o terapeuta está sempre em permanente esforço de aprendizagem e criação de sua prática. Os terapeutas que fazem uso dessa abordagem são, na verdade, profissionais especializados em psicoterapia que se instrumentalizam do marco de referência Existencial, mas que também estudam para desenvolver autonomamente uma teoria e uma prática clínica. Cada profissional desenvolve uma forma peculiar de colocar seus pressupostos em prática (ERTHAL, 1990). O critério da Terapia Vivencial é que cliente volte ao seu estado criativo, como ser no mundo, apropriando para si a responsabilidade de suas escolhas e assim, também, sua autocriação. Também, tendo como intenção a ampliação da autoconsciência e da capacidade de autogerir-se.

A CLÍNICA FENOMENOLÓGICO EXISTENCIAL E O ATENDIMENTO PSICOLÓGICO
A clínica psicológica dentro da abordagem fenomenológico existencial, que propõe a respeitar todas as experiências do cliente e a sua autonomia para dar novo sentido a sua história de vida, sendo que, o psicólogo deve ir além do ouvir as palavras ditas, utilizando-se da escuta ativa e empática para almejar ao significado contextual e simbólico do que está sendo verbalizado pelo cliente. Para tornar mais sintetizado, o psicólogo em formação se coloca em uma postura de facilitador das expressões de seu cliente, para isso não se utilizando da interpretação, mas sim, da compreensão existencial do cliente (GOMES; CASTRO, 2010).
Sabe-se que em psicoterapia a principal ferramenta do processo é a fala, porém quando não possuímos essa atitude do cliente deve-se perceber que a comunicação não é apenas verbal, podendo ser expressa também de um modo não-verbal onde o “falar” pode se ter um sentido mais amplo, em apenas “comportar-se”. Mesmo o psicólogo em formação e cliente iniciam a terapia pela fala, muitas mensagens são expostas de forma não verbal ao longo das sessões, e cada um, aprende a “ler” e interpretar a linguagem silenciosa do outro em diálogo terapêutico. (FIGUEIREDO, 2005, p.32).
Com base nos fundamentos teóricos sobre fenomenologia existencial, considera-se que existencialmente o Ser se configura em um modo de existir em ato. As cobranças em diversos contextos familiares, sociais dentro desse processo acarretam diversas formas de sofrimento ao sujeito em transição, tanto no que se refere a sua maneira de comportar e pensar, ou seja, percebe-se um verdadeiro conflito existencial (FERREIRA; ANASTÁCIO, 2012).
A falta de compreensão desse ciclo vital pode deixar as condições existenciais ainda mais densas e insuportáveis, fazendo com o Ser paralise completamente para o mundo exterior, silenciando seu sofrimento. Caracterizando-se por uma intensa busca de si mesmo, encontrando-se constantemente com crises e contradições. Diante de tais sentimentos que de alguma forma o sofrimento psíquico vai se instalando de forma gradual, no estudo de caso especificamente observo uma maneira de se mostrar para um mundo em que o silêncio e o paralisar, limitando que ampliar possibilidades foi única saída para tais sensações de exposição. O quadro pode ser um comportamento apresentado por muitas pessoas com o intuito de se esquivar do mundo externo e de suas experiências. O ser humano é afetivo e que precisa dessas manifestações para conviver de maneira saudável. Embasando-se da conceituação de afetividade descrita por Ballone (2005), para compreender melhor a sua importância. Portanto afetividade é como uma energia capaz de impulsionar o indivíduo para a vida, como uma energia psíquica dirigida ao relacionamento do Ser com sua vida, como o humor necessário para valoração das vivências.
O SILÊNCIO PSICOTERAPÊUTICO COMO MANIFESTAÇÃO DO SOFRIMENTO
É recorrente deparar como o silêncio em psicoterapia e o momento angustiante, principalmente para o psicólogo e que diante disso muitas vezes considera não fazer um bom trabalho. Os terapeutas existenciais compreendem o quão primordial é a fala no processo do trabalho terapêutico, porém em alguns casos a ausência dessa manifestação verbal e a partir daí tem uma nova forma de entrar em contato com o fenômeno, ou seja, por meio da compreensão empática dos comportamentos não verbais. “É preciso salientar que o terapeuta deve examinar e apreender a linguagem verbal e não verbal do cliente, sempre baseado no contexto. Nas palavras de Erthal (1995), o silêncio, a imobilidade ou qualquer outra forma de renúncia já em si uma comunicação” (ALMEIDA; NETO, 2012). Perante a tal dificuldade é primordial um olhar mais compreensivo do que interpretativo, e dar consciência ao cliente sobre essa vivência de se calar. Fazer isso por meio de intervenções mais assertivas, ou seja, fazer com o que o cliente veja os seus comportamentos, pontuando para ele suas condutas e a sua forma de linguagem não verbal.
Compreender que cada sujeito vê grandes obstáculos em sua existência, cabendo uma ampliação para  visualizar a sua vida como algo possível e real, fazendo isso por meio da tomada de consciência. E que em alguns momentos o calar-se não é um ato de covardia, mas sim de luta, muitas vezes contra si mesmo. Portanto, cabe compreender o silêncio para que o processo terapêutico se torne um espaço em que haja a escuta para além do que é dito, um espaço de acolhida, mesmo que a princípio não seja manifestado nenhuma fala.

REFERÊNCIAS
AGUIAR, Luciana. Gestalt- Terapia com crianças: teoria e prática. São Paulo: Summus. 2005.
ALMEIDA, Elce Queiroz; NETO, Raquel. A clínica fenomenológica-existencial. Blog da Newton Paiva: Revista de Psicologia. Belo Horizonte, p. 1-2, 2012. Disponível em: < http://blog.newtonpaiva.br/psicologia/wp-content/uploads/2012/08/pdf-e2-13.pdf>. Acesso em: 13 setembro 2019.
ARAÚJO, Ariana Maria Leite. O diagnóstico na abordagem fenomenológica-existencial. Revista IGT na Rede. v.7, n.13,p. 316-323, 2010. Disponível em: <www.igt.psc.br/ojs/include/getdoc.php?id=1678&article=289&mode=pdf>. Acesso em: 13 setembro 2019.
BALLONE, José Geraldo. Alterações da Afetividade. In: Psiqweb. 2005. Disponível em: <http://www.psiqweb.med.br/site/?area=NO/LerNoticia&idNoticia=128>. Acesso em: 13 setembro 2019.
Erthal, T. C. S. Terapia Vivencial – uma abordagem existencial em psicoterapia. Vozes, Petropólis – RJ, (1990).
Erthal, T. C. S. Perfil - http://www.psicoterapiavivencial.com.br/perfil.php - acessado em 20 de junho de 2019.
FERREIRA, Luciana Neves; ANASTÁCIO, Fernando Dório. Adolescência e algumas questões existenciais. Revista de Psicologia. Belo Horizonte. p. 39-41, 2012. Disponível em: http://blog.newtonpaiva.br/psicologia/wp-content/uploads/2012/06/pdf-e3-10.pdf. Acesso em: 13 setembro 2019.
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Autor: Sidnei Eugênio de Oliveira
Acadêmico da 4ª Serie do curso de Psicologia - Universidade Paranaense - UNIPAR
Estagiário do Instituto AMPLIAR

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